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pessoas e coisas da vida

pessoas e coisas da vida

Março 20, 2024

imsilva

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Com raiva, alguma agressividade ou talvez, quem sabe, simplesmente frustração, deu um pontapé num pequeno tronco que apesar de pequeno era mais forte do que estava à espera, danificando a ponta da cara bota de camurça. Amor com amor se paga, pensou Cecília.

A sua avó dizia-lhe muitas vezes -" Filha, prepara-te que a vida nem sempre é como tu queres". Mas quando somos crianças, tudo o que os mais velhos nos dizem soa a exagero, e teimamos em não acreditar.

O emprego onde estivera alguns anos e que parecia ideal, não tinha durado muito. A conjuntura económica e empresarial tinha obrigado ao encerramento da empresa e dezenas de pessoas, algumas com agregados familiares ao encargo, ficaram sem saber o que fazer a seguir, uma vez que era um problema geral.

Cecília pôs mãos à obra e tentou seriamente encontrar algo que pudesse resolver a sua situação. Mas não foi fácil e o que aparecia, ou era muito longe ou era muito abaixo do que seria necessário para as suas obrigações. O seu apartamento tinha uma renda significativa, tanto pelo sítio como pela sua qualidade. E tinha ao seu encargo a mãe que internada numa casa de repouso, devido a um Alzhaimer galopante, não poderia de maneira alguma descuidar. Queria fazer os possíveis para poder continuar onde estava.

Falaram-lhe de um escritório de advogados humilde na sua dimensão por ser bastante recente, e tentou a sua sorte. Os seu currículo servia para o posto, e quando se apresentou, foi aceite. O ordenado não era o que estava habituada, mas não estava em condições de recusar. Eram 4 pessoas que a muito custo faziam com que o escritório ganhasse alguma credibilidade. Entre eles um homem que mexia com as emoções de Cecília, e quando deu por isso já estava perdidamente apaixonada. Pensando ser correspondida, deu tudo de si e sonhou com algo mais, mas, "a vida nem sempre é como nós queremos", lembrou mais tarde. Claro que tinha que ser casado, claro que tinha que ter três filhos, claro que tinha que contar a velha história do, "não sou feliz no meu casamento" mentindo com quantos dentes tinha,

Cecília deixou o escritório. Não conseguiria ver aquele homem à sua frente todos os dias, e assim voltou ao desespero. O estado de saúde de sua mãe agravava-se, deixando-a impotente perante a ideia de ficar sozinha, mais sozinha do que já estava.

Naquele dia, completamente desajustada nas emoções, no meio de um jardim onde esperava encontrar alguma paz e discernimento, deixou-se cair no chão com as pernas cruzadas, apoiou os cotovelos nos joelhos e a cabeça nas mãos entrelaçadas e finalmente deixou as lágrimas correrem. Quem sabe se com as lágrimas não sairiam também dores, tristezas e amarguras?

Ao mesmo tempo o céu, talvez em solidariedade, mandou as nuvens chorar também.

Cecília olhou para cima, sentiu gotas de água a cair-lhe na cara, sorriu, agradeceu e sentiu-se acompanhada.

Outubro 23, 2020

imsilva

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Arrastava-a atrás de si como se pesasse o mesmo que as suas agruras, que os seus anos. Não havia nada a fazer, as duas andavam sempre juntas, porque era dele. A almofada era do marido que já não estava há 14 anos. Só conseguia dormir com aquela, quando não a tinha, ficava mal disposto e exigia que a mulher a encontrasse, mesmo que não estivesse bem seca, depois de uma lavagem à pressa, ela chegou a secá-la com o secador. E apesar de ela agora, já não ter memória, algo mais forte fazia com que não a largasse.

A filha, pacientemente, esperava por dias menos maus, para poder levar a almofada e lavá-la à socapa. A mãe, em dias menos maus, tornava-se mais maleável e mais compreensiva aos pedidos da filha, tornava-se menos ansiosa.

Muitas lágrimas eram choradas às escondidas. A filha porque sofria ao ver a decadência da mulher que com garra e muito esforço tinha levado aquela família em frente, contra tudo e contra todos, mesmo contra um marido sem sensibilidade e isento de compaixão, cego perante a riqueza que tinha e não merecia, uma familia bem formada e com valores maiores. A mãe, quando nos dias menos maus, e sempre momentaneamente, se apercebia do seu estado e da movimentação à sua volta. Aquela não era a casa de que se lembrava e aqueles não eram os seus filhos pequenos, que sempre necessitavam da sua atenção.

Entretanto, decide ir ver as flores ao quintal, e lá vai a arrastar os pés, com a  almofada dele no seu encalço.

 

Texto no âmbito do desafio da Mula e da Mel

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