Abri a cortina e espreitei pela janela, havia um manto branco que cobria telhados, carros, árvores e os passeios onde o povo caminhava com extremo cuidado para não escorregar e passar por trabalhos que ninguém precisava.
A neve sempre foi uma das minhas coisas preferidas, apesar de fria, era linda e mostrava que nem tudo precisa de ser faustoso. As coisas simples podem ser maravilhosas.
Nesse dia tinha uma viagem preparada até ao orfanato, onde sempre que podia, passava algum tempo com as crianças que ali viviam, as crianças que por um motivo ou por outro, careciam de família, de colo, de aconchego, basicamente de amor familiar. Notava que todos os que trabalhavam ou , como eu, se voluntariavam para dar assistência a estes miúdos, faziam-no sempre com o coração a transbordar. Mas, nitidamente não era suficiente. Não era um, eram muitos, e era difícil que a atenção dada fosse bastante para se sentirem como num lar, onde poderiam ser acarinhados por pai, por mãe, por avós ou irmãos.
Era véspera de Natal e a promessa era diversão, brincadeiras e, muito importante, um teatrinho que estava a ser preparado há algum tempo e que teria o seu apogeu nesse dia.
Cheguei e imediatamente chamou-me a atenção não ver o Rui, que quando eu chegava vinha logo dar-me um grande abraço. O Rui era um menino de 7 anos, a que eu me tinha afeiçoado particularmente, e que tinha ido ali parar, por a mãe ter alguns problemas psíquicos, o pai ser desconhecido e o resto da família não ter ficado muito interessada nele.
Perguntei à D. Marília por ele, ao que me respondeu que o Rui nessa noite tinha tido febre e que tinha ficado no quarto até ver se melhorava. Subi ao piso dos quartos, e dirigi-me ao quarto que Rui partilhava com outros meninos, e lá estava ele encolhido dentro de lençóis e cobertores, com duas rosetas na cara e os olhos com mais brilho do que seria desejável. Fiz-lhe um pouco de companhia, li-lhe uma história e depois de ter novamente tomado o medicamento que ajudava a baixar a febre, deixei-o e fui ajudar os outros meninos nos afazeres que em ânsias esperavam à tanto tempo. Alguém tinha ficado com o Rui, que com o ar mais triste deste mundo, aceitou não poder fazer parte dos festejos.
Estava sozinha por opção, era assim que me sentia bem, e ainda não tinha aparecido alguém que me fizesse mudar de ideias. Não sabia se por isso, ou por realmente haver um grande entendimento entre mim e o pequeno Rui, estávamos muito ligados e a minha preocupação por ele era grande.
Cheguei a casa depois de ter acompanhado a alegria da criançada nas festas da véspera de Natal, e de me ter despedido do Rui, percebendo que havia melhoras.
Antes de me deitar, algo me incomodava, não sabia identificar o quê, era uma ansiedade que não me deixava, como se tivesse de fazer uma coisa importante, como se estivesse a esquecer-me de algo...e percebi! Liguei para o orfanato e perguntei à D. Marília pelo estado do Rui, respondeu-me que a febre tinha baixado completamente e que parecia bastante mais animado. Num impulso, perguntei se haveria alguma hipótese de levar o pequeno a passar o dia de Natal a casa dos meus pais, onde me esperavam os meus irmãos e sobrinhos. D. Marília, com notório contentamento na voz, respondeu-me que claro que sim, que não poderia imaginar melhor prenda de Natal para o Rui.
Quando o fui buscar, os nossos olhares reflectiam emoções e esperança, Foi uma viagem feita a dois, com sorrisos de orelha a orelha, com confiança em algo maior, que apesar de não conseguirmos identificar, sabíamos que era algo bom, algo que marcaria a nossa vida e com certeza o nosso futuro.